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sexta-feira, 10 de julho de 2020

Gratuidade de justiça e o "amplo" acesso a justiça e ao Poder Judiciário em grau recursal

Apontamento constitucional sobre o instituto da gratuidade e o poder tributário de cobrar custas em grau de recurso.


Por Artur Félix

 Como se sabe, ao interpor um recurso a parte exerce seu direito de amplo acesso a ao Poder judiciário em mandamento fundamental descrito no artigo art. 5.º, XXXV[1] – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O mesmo artigo art. 5.º, LV[2], aponta: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”; Art. 3º do CPC[3] “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”

   Nessa toada há duas formas de fazê-lo (recorrer) consoante as regras processuais vigentes no território brasileiro. A primeira é feita mediante o pedido preliminar de gratuidade de justiça fundado no artigo 98 do código brasileiro de processo civil[4]. Em segundo lugar por meio do pagamento antecipado de custas judiciais conforme estabelecido em cada lei estadual que rege essa matéria e no próprio CPC artigo 82[5].

   Como se denota, para o cidadão há duas saídas para objetivar o acesso a prestação jurisdicional, e ao próprio poder Judiciário. Como dito, pagando – se as custas ou pedindo isenção pelo instituto da gratuidade ter-se-á acesso à Justiça.

   Partindo desta premissa e tratando aqui da esfera recursal, pode-se concluir que a gratuidade requerida nos termos do artigo 98 do CPC[6] é um pedido anterior ( preliminar, pré - processual[7]) ao próprio recurso conforme ensina Ponte de Miranda ( cit. 9)[8], assim como a averiguação de deserção. Em outras palavras, o Magistrado ou relator (a) examina o pedido de gratuidade tão somente, e sem adentrar ao mérito ou ao que se discute no recurso seja ele qual for. Trata-se de cognição exauriente sumária, me melhor vernáculo cognição “cirúrgica”.

   Note-se que o pedido preliminar se traduz num “pedido de acesso”. Diz-se pedido de acesso pois justamente é disso que se trata. No caso concreto a ser examinado há uma declaração unilateral do recorrente (ou recorrido) asseverando não ter condições de cumprir ainda que de momento a regra geral, qual seja pagar as custas.

    Nessa altura, merece breve reflexão quanto ao pedido de gratuidade de justiça. Já se apontou que se trata de um pedido preliminar, de um pedido de acesso e caminho ao Poder Judiciário, e que funda-se em situação de hipossuficiência declarada[9].

    Pois bem, observe-se que o artigo 90 § 3º do CPC assevera que presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. Entretanto, a liberdade do julgador ao decidir vai além da declaração presumível, pois pode ele exigir provas da tal hipossuficiência a teor do parágrafo 2º do mesmo art. 99 do CPC.

    Feito esse apontamento, resta ao recorrente (ou recorrido) apresentar em estrita obediência a ordem judicial seus comprovantes, seus argumentos referentes a sua necessidade de ter acesso a jurisdição por meio da gratuidade. Se o Magistrado entender ser o caso da gratuidade a indeferirá, ordenando o recolhimento das custas referentes ao ato que se busca realizado pelo Poder Judiciário.

     Note-se que até aqui não se adentrou ao mérito ou ao processo em si, discutiu-se apenas e tão somente o acesso ao Poder Judiciário[10], frisa-se direito constitucional do cidadão, que em tese deve ser amplo. É bem justo que em um recurso que o réu foi citado, o Juízo proferiu decisões advindo uma renúncia ou desistência seja devida custas e até honorários. Isto não se discute até por expressa determinação legal.

    A questão paradigma que se põe a pensar aqui é: Em fase preliminar de acesso ao Poder Judiciário, onde se pugna por um benefício previsto em Lei (para o acesso) a gratuidade, e nesse mote se indefira e não se acolha as justificativas, posteriormente se ordena efetuar o pagamento e a parte recorrente desiste de sua pretensão recursal por não ter como pagar essa deverá essa ser penalizada com a imposição de pagamento de custas pelo não seguimento do recurso? Frise-se ainda em faze de discussão de acesso ao direito constitucional de recorrer gratuitamente, bem como sem haver a presença do recorrido.

   Já revelando parte do norte jurídico que se defende, primeiro há de se observar que há uma espécie de atrito entre o poder arrecadador do estado com as normas constitucionais de acesso à justiça. Como sabido, é direito do Estado (Poder Judiciário) cobrar as taxas, do outro lado é direito constitucional da pessoa humana[11] o acesso amplo a justiça. Em segundo há de se analisar se o fato de ‘pedir a gratuidade” gera o direito – poder do estado impor a condenação em custas.

Primeiramente deve-se considerar o amplo acesso à justiça e assim por consequência ao Poder Judiciário como um direito fundamental de qualquer cidadão ou pessoa humana, assim como a dignidade. Para não ficar nas palavras desse subscritor assim aponta respeitáveis documentos jurídicos:

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22.11.1969, estabelece no art. 8.1 que:

 “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”

“As garantias constitucionais do direito de petição e da inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, quando se trata de lesão ou ameaça a direito, reclamam, para o seu exercício, a observância do que preceitua o direito processual” (art. 5.º, XXXIV, a, e XXXV, da CF/1988) (Pet 4.556-AgR, Plenário, Rel. Min. Eros Grau, DJE 21.08.2009)

“O direito de acesso à justiça traduz-se numa das maiores conquistas do Estado Democrático de Direito. Manifesta-se pela inafastável prerrogativa de provocar a atuação do Poder Judiciário para a defesa de um direito.” CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 699.

    Dessa linha destrinchando ainda mais obtém – se reais questionamentos: Primeiro postular o acesso pela gratuidade é um direito? A resposta é desenganadamente sim! O direito de petição tem assento constitucional no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal:

“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder; b) a obtenção de certidão em repartição pública, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.”

    Daí vem a segunda pergunta: Ao requer o acesso à justiça pela via gratuita não se está justamente exercendo o direito a petição? A partir daí decidir-se-á se o acesso será gratuito ou não. Reitera-se se está a falar de uma fase de acesso ao Poder Judiciário e não do conhecimento ou não de um recurso interposto. Pode-se dizer que o requerimento e o exame do pedido de gratuidade é o direito constitucional processual preliminar de acesso à justiça.

    Surge nova pergunta a terceira: É possível liminar o acesso do cidadão a simples solicitação de um direito constitucional? Com a vênia do pensamento diverso, o 5º, inciso XXXIV da CRFB aponta que o direito de pedir é gratuito[12]. Rememora-se não se está aqui a buscar conhecimento do recurso propriamente dito, o que se está a discutir é a fase preliminar de acesso ao órgão recursal.

    Pois bem, verificou-se que: 1º O direito constitucional de pedir (petição) é gratuito e exercível; 2º Se está a buscar o direito constitucional amplo acesso a justiça; 3º se está a utilizar o instrumento processual adequado requerimento de gratuidade art.988 e seguintes doCPCC; 4º Se está a discutir direito constitucional fora do espectro do próprio recurso e da relação processual; 5º Se está diante de um procedimento pré-cognitivo processual. Surge a quarta pergunta: Porque punir o recorrente com pagamento de custas que teve seu pedido negado e não deve condições de pagar o preparo?

   Com o devido respeito o CPC de 2015 olvidou-se da realidade brasileira. Tristemente o COVID – 19 aflorou questões que o código não previu como a espécie que se busca dirimir. Repita-se interposto recurso, presentado requerimento de gratuidade, sendo esta indeferida, por último determinado o recolhimento das custas o recorrente desiste do recurso por não ter condições financeiras de arcar com o valor este (o recorrente) será devedor de custas?

   Com a máxima vênia, parece não ser o caminho mais justo. A nosso sentir o requerimento e julgamento do pedido de gratuidade é a materialização do amplo acesso à justiça. Tal requerimento tem cunho constitucional assim como ação de habeas corpus, são actos inafastáveis do exame jurisdicional e por conseguinte direito fundamental do ser humano. Nessa linha, há clara antinomia, um contraste entre poder de tributar[13] a taxa judiciária e o amplo acesso à justiça. Imagine-se se o requerimento de gratuidade fosse sempre cominado em condenação em custas processuais ou a imposição de recolhe-las peremptoriamente. Não se estaria dando o direito ao acesso apenas o direito a recolher as custas com uma pequena e delicada chance de ter a gratuidade.

    Até o direito de pedir é direito constitucional como aqui se defende. Ora se negar-se ao indivíduo o direito mínimo de acesso, bem como o direito de utilizar as ferramentas para acesso, como é o caso do requerimento de gratuidade estaremos fechando as portas do Judiciário e transformando – o em um órgão feito para as elites que podem pagar ou de uns e outros que por graça conseguirem a gratuidade. Perceba-se, não se está a discutir aqui a concessão em si da gratuidade, mas a inacessibilidade ao instrumento de obtê-la.

    Repita-se quando se pune o simples requerimento se perpetra injustiça e manda um recado equivocado para a sociedade. O ponto cardinal dessa discussão é ter o AMPLO acesso à justiça como norte e ter o requerimento de gratuidade como ferramenta de acesso. Longe de defender aqui a vedação ao indeferimento em casos que saltam aos olhos, contudo solitária e árdua é a vida do magistrado, que não deve como sabido cotejar tão somente o posto nos autos (Access to Justice Act)[14].

    A doença (O vírus) Covid – 19 tem nos ensinado que lidamos com fatos sociais que são regidos por leis, contudo a rigidez das leis não pode desprezar o mundo real. Em matéria processual é o caso em exame não se pode desprezar o momento impar vivido, nem pode desprezar que todos passam por momentos de dificuldades financeiras, seja rico ou pobre. Assim, há de se garantir o amplo acesso a justiça a todos não apenas ao miserável permanente (infelizmente).

    Observe-se que a partir da gratuidade é que se abre o Poder Judiciário para milhões de brasileiros, que temporária ou definitivamente não possuem condições de pagarem para terem justiça[15]. O Estado assumiu para si o encargo da jurisdição toda vez que impede ou pune o cidadão de ter acesso a esse espectro estatal fere a Carta da Republica bem como impõe ao cidadão a pecha da injustiça que ao seu sentir existe porquanto manejou o recurso. Talvez o Poder Judiciário seja o único Poder constituído que não se deve prender ao viés arrecadatório sob pena de não ser justiça para todos, mas sim justiça para os ricos.

   Filosoficamente dizendo não se pode pagar para ter justiça, a paga da justiça é extirpar a justiça. A justiça é algo quase divino e sua actio é independente. Nessa linha, e concatenado em breves e singelas argumentações é inegável ser injusto condenar a pagar custas processuais o recorrente que não teve seu pedido de gratuidade aceito e não teve como recolher o preparo. O recorrente que assim procedeu já está sendo punido severamente em não ter seu pedido analisado. O eminente Dr. Rui Barbosa, em razões apresentadas ao S. T. F. em 1892, advertiu que, “onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça“.

Ora a seus olhos a injustiça foi perpetrada. Não se está aqui a analisar se com razão ou sem está o (a) recorrente, apenas destaca-se a penalidade será dobrada caso lhe seja imputada as custas processuais. Em suma é imperioso resguardar que seja o mínimo de AMPLO acesso. Punir quem o “requer, o pedir” é inconstitucional e injusto com o devido respeito dos postulados contrários.

Por Artur Félix 

O presente artigo tem por finalidade reflexão acadêmica, é possível reproduzir o texto ou parte dele desde que citada a fonte de extração, data e o autor.

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição.htm Acesso em 24/05/2020;

[2] opus citatum;

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

[4] Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. § 1º A gratuidade da justiça compreende: I - as taxas ou as custas judiciais; II - os selos postais; III - as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; IV - a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; V - as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais; VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; VII - o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; VIII - os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

[5] Art. 82. Salvo as disposições concernentes à gratuidade da justiça, incumbe às partes prover as despesas dos atos que realizarem ou requererem no processo, antecipando-lhes o pagamento, desde o início até a sentença final ou, na execução, até a plena satisfação do direito reconhecido no título.

[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

[7] Assistência judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária é a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito administrativo. Para o deferimento ou indeferimento do benefício da justiça gratuita é competente o juiz da causa (MIRANDA, 1987, p. 641-642). MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. Tomo V.

[8]MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. Tomo V.

[9] […] e assim é por força do art. 99, § 3º, cujo texto estabelece que se presume “verdadeira a alegação de insuficiência (de recursos) deduzida exclusivamente por pessoa natural […]” ao juiz não é dado determinar à pessoa natural que produza prova que confirme a presunção, determinação este que contraria o disposto no art. 374, IV. Admite-se apenas que a parte contrária produza prova capaz de afastar a presunção relativa, o que dependerá do oferecimento de impugnação à gratuidade de justiça. (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. Gen., 2016. p. 74)

[11] Assenta-se pessoa humana pois o acesso a justiça vai além de um cidadão de um país. O acesso a Justiça é tido como direito básico de ser humano, assim como um julgamento justo.

[12] LEI Nº 1.422 DE 18 DE DEZEMBRO DE 2001, Art. 2º São isentos do pagamento de taxas judiciárias e taxas de diligência externa: (Redação dada pela Lei nº 3.517, de 23.9.2019) (...) XIV - as petições e as certidões de que trata o artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal;

[13] RE nº 116.208-2, em 20.04.1990, pelo Ministro Moreira Alves do STF, a natureza jurídica das custas processuais seria, então, a de taxa, como espécie tributária

[14] Do direito inglês “Access to Justice Act “ modelo de assistência jurídica da Inglaterra que passou a ser regulamebtado pelo Access to Justice Act, que instituiu a Legal Services Comission (LSC), o Funding Code, que é o conjunto de regras que norteia a concessão da assistência, estabelecendo os critérios e requisitos que qualificam o postulante como potencial beneficiário;

[15] The very essence of civil liberty certainly consists in the right of every individual to claim the protection of the laws, whenever he receives an injury. One the first duties of government is to afford that protection. The government of the United States has been emphatically termed a government of the laws, and not men. It will certainly cease to deserve this right appellation, if the laws furnish no remedy for the violation of a vested legal right. (Marbury vs. Madison, 5 U.S (1 Cranch) 137 (1803) (Marshall, C.J.) Em livre tradução do subscritor: “A própria essência da liberdade civil certamente consiste no direito de todo indivíduo reivindicar a proteção das leis, sempre que receber uma lesão. Um dos primeiros deveres do governo é garantir essa proteção. O governo dos Estados Unidos foi enfaticamente denominado governo das leis, e não dos homens. Certamente deixará de merecer essa denominação correta, se as leis não fornecerem remédio para a violação de um direito legal adquirido.”

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